A advogada é uma das fundadoras da “Tenda das Candidatas”, entidade voltada à formação de mulheres para a política partidária e eleitoral
Dois elementos andam juntos na política partidária e eleitoral no Brasil: a sub-representação de mulheres e a violência política de gênero. A constatação é da advogada e mestre de políticas públicas em direitos humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Laura Astrolabio.
Uma das fundadoras da “Tenda das Candidatas”, a pesquisadora explica que o projeto surgiu exatamente da vontade de “botar a mão na massa” e contribuir na chegada de mais mulheres ao Poder. Para isso, elas oferecem formações tanto em períodos eleitorais, como após as eleições, além de formarem uma rede de cooperação entre as candidatas pelo País.
Esta luta, contudo, não é simples e passa pelo enfrentamento de diversas violências políticas de gênero e racial, já que – como ela lembra – as mulheres negras estão ainda mais sub-representadas dentro da política institucional.
“Um dos gargalos para sub-representação de mulheres na política é a violência política de gênero e raça. Essa questão do financiamento é uma violência política. As pessoas acham que violência política é homicídio, assédio sexual no partido, (mas) também o subfinanciamento”, afirma.
E combater a “violência simbólica” fruto da falta de representatividade de mulheres e de outros grupos minoritários pode fortalecer a própria democracia.
“(Porque) Quando você tem os grupos, a maioria da população não representada nos cargos de poder, a gente tem uma democracia fragilizada. Se a democracia é o poder pelo povo, se o povo não está representado, então a democracia é frágil”, explica.
Por isso, ela advoga pela necessidade de “colocar mais e mais mulheres lá”. “Sobretudo porque quando a gente vê mulheres lá… Muitas mulheres, muitas mulheres negras, isso vai se tornar uma coisa comum”, completa. E assim, as jovens mulheres, e não só elas, possam cada vez mais saber que a política também é um espaço seu.
CONFIRA A ENTREVISTA COMPLETA COM LAURA ASTROLABIO.
DN – São quase 15 anos da lei que obriga os partidos a apresentarem, pelo menos, 30% de candidaturas femininas. Nesse período, houve um aumento da representatividade, mas de forma lenta. Por que essa ação afirmativa não tem dado conta de aumentar a representatividade? O que está faltando?
Existem vários gargalos para as mulheres, em todas as áreas. A política é mais um campo. Tem o campo jurídico, o campo do jornalismo, tem a academia… A política é mais um campo e tem muitos dos mesmos gargalos que existem nas outras áreas: somos mulheres, já começa aí, numa sociedade patriarcal. Então, a gente não consegue acessar os espaços da mesma forma que os homens. Por exemplo, uma mulher para ser política, ela tem que ter mestrado, doutorado, (ser) advogada, médica e o escambau. O homem para ser político, (quando) ele é filho do deputado, o pai pega ele, coloca com 18 anos e ele já é vereador. Estou falando isso porque acho importante falar a respeito.
A divisão sexual e racial do trabalho, para mim, é um dos maiores gargalos, porque existem mulheres que não se enxergam nesses lugares. Se você chegar e falar… Às vezes, eu olho e falo assim: ‘nossa, essa mulher é uma liderança’. (Mas) Se você vai falar com ela (e diz) ‘vem cá, você quer ser candidata?’ Ela (fala) ‘me candidatar? Como assim não? Não! Por que?’ ‘Porque você é uma liderança. O que você já faz, em um cargo de poder, vai fazer mais’. ‘Não, não sou liderança de nada não’.
Elas nem sabem, se perguntar para elas o que é capital político, o que é capital social, elas não sabem te dizer, mas elas têm. Elas são conhecidas lá na comunidade. Qualquer problema na comunidade, você (pergunta) ‘falo com quem aqui?’ ‘Fala com a fulana, que ela resolve’. Vai todo mundo pra casa da fulana, tudo o que acontece é na casa da fulana… Mas ela não se acha uma liderança, ela não se enxerga assim.
Isso é um problema da divisão sexual racial do trabalho, que determina o que é coisa de mulher e o que é coisa de homem. Então, a mulher não é socializada, não é construída socialmente para estar nesse lugar e nem para, muito menos, se enxergar nesse lugar. Então, a gente já tem esse gargalo, essa dificuldade, esse entrave. Mas não é um dos maiores.
Muitos partidos (…), quando não cumpriam as cotas, uma das coisas que eles falavam… (Na verdade,) Continuam sem cumprir, né? Mas uma das desculpas que eles já usaram e continuam usando é ‘as mulheres não procuram gente’. Isso não é verdade! Nos partidos políticos, as mulheres são maioria das filiadas. É porque eles colocam essas mulheres dentro dos partidos para carregar piano, eu costumo usar esse termo. Então, vamos dizer, a Marielle (Franco), quando foi candidata a vereadora, ela já tinha uma história de luta de anos, que ninguém sabia, ninguém conhecia a Marielle.
Muita gente só foi saber quem era Marielle quando ela foi assassinada. Muita gente, inclusive no Rio de Janeiro, na cidade do Rio de Janeiro, no estado do Rio de Janeiro, que dirá no Brasil e no mundo. Mas ela já tinha um trabalho, ela carregava o piano, um piano muito pesado, porque ela trabalhava com direitos humanos. (…) Ela era do partido, ela construía… Porque eles gostam muito de falar isso ‘a gente não deu porque ela entrou pra se candidatar, ela não construiu o partido’. Tá bom, querido, e as que construíram o partido, constroem os partidos e vocês fazem as mesmas coisas? Então, eles costumam dizer isso.
Mas a questão da divisão sexual e racial do trabalho não pode ser utilizada para eles nesse sentido, mas é uma responsabilidade deles também, é uma responsabilidade da sociedade. O que nós fazemos para apoiar essas mulheres? Para dizer para elas que sim, você é uma liderança sim. (…) Nosso dever também é abrir os olhos dessas mulheres, explicar para a sociedade que capital político às vezes é mais do que dinheiro, do que capital financeiro. (…)
Depois disso, tem os partidos. (…) Um dos gargalos para sub-representação de mulheres na política é a violência política de gênero e raça. Mas a gente tem vários gargalos. Essa questão do financiamento é uma violência política. As pessoas acham que violência política é homicídio, assédio sexual no partido, (mas) também o subfinanciamento. O chamar a candidata e ela vai lá para negociar, chega com o cronograma dela para colocar a campanha dela na rua… A campanha, quando inicia, ela é uma empresa, tem CNPJ e tudo, conta de banco. E aí se faz um mini planejamento, chega lá e fala assim ‘eu fiz esse planejamento aqui, o que disso daqui eu vou conseguir fazer com o dinheiro que o partido vai me dar, para eu poder saber até o que eu posso pedir no meu financiamento coletivo de campanha…’ Organização, administrar uma campanha. Aí, (a candidata) chega lá e o cara fala ‘depende, se você sentar no meu colo, isso acontece’.
E essas mulheres, a maioria delas são mulheres feministas. Então, você imagina se uma mulher feminista vai fazer isso? Não vai, né? Ela vai abandonar a campanha, ela vai querer fazer a campanha com dinheiro dela, ela vai ficar doente, ela vai ficar cheia de dívida.
DN – E temos também a responsabilidade dos partidos…
A gente tem observado que os partidos, de direita a esquerda, são os maiores gargalos para a subrepresentação política das mulheres. E aí a gente tem a PEC 19 (também conhecida como PEC da Anistia), que antes dela teve a PEC 18, que a gente na Tenda também fez incidência (contrária a proposta, que propõe anistiar partidos por descumprimento de regras eleitorais, incluindo de destinação de recursos a candidaturas femininas e de pessoas negras). (…) Ainda assim, é muito difícil fazer, porque num país onde várias coisas estão acontecendo, como que a gente chama atenção para uma situação específica? Porque não há hierarquia de problemas, todos são problemas.
Só que a subrepresentação de mulheres e negros, as pessoas colocam como um problema menor, porque são grupos historicamente marginalizados, tanto os negros quanto nós mulheres – eu, mulher negra, porque quando eu falo nós (são as) mulheres negras. Quando você tem os grupos, a maioria da população não representada nos cargos de poder, a gente tem uma democracia fragilizada. Se a democracia é o poder pelo povo, se o povo não está representado, então a democracia é frágil.
Então, para mim, olhando em um olhar mais radical, no sentido de olhar pela raiz o problema, esse é um dos maiores problemas do Brasil, a sub-representação. De mulheres, de negros, de quilombolas, de indígenas. As pessoas precisam estar lá proporcionalmente representadas. Quando eu falo que é um dos maiores problemas do Brasil, um dos maiores problemas da nossa democracia e que causa todos os outros problemas que a gente tem, porque a democracia não é só sair para votar.
Democracia também está relacionada a direitos fundamentais, a direitos humanos, está relacionado a tudo. Quando a gente fala que (a sub-representação) prejudica a democracia, inclusive favorece a ascensão do fascismo, porque o fascismo só ascende em democracias que são fracas. Se tem uma democracia forte, o fascismo dificilmente consegue ascender. Isso a história conta para a gente.
Então, esse é um olhar um pouco mais profundo sobre a importância de lançar a nossa atenção para essa PEC. (…) Então, entender que essa PEC é inconstitucional e aí, como que ela passa na CCJ? Foi lá dito que ela era inconstitucional, tiveram destaques para mostrar. Por que inconstitucional? Estamos falando de cotas (e essa) é uma PEC que basicamente quer derrubar uma medida de cotas que estava estabelecida por lei, quer derrubar os mecanismos que vieram… Se você põe cotas e não coloca nenhum mecanismo de fiscalização, de multa pelo não cumprimento, ninguém cumpre. Isso está na história das cotas do mundo. (…)
Foi preciso colocar multas, obrigatoriedades, regras que obrigam as pessoas a cumprirem, para que fosse cumprido. Porque ninguém quis dar nada para as pessoas de grupos historicamente marginalizados, nunca, de graça, de boa vontade.
DN – Você falava a respeito de considerar que a sub-representação de mulheres, de pessoas negras, de outros grupos minoritários, é um dos principais problemas que temos. No caso, de mulheres e mulheres negras – que são ainda menos representadas – o que pode ser feito, como ação afirmativa mesmo, para tentar mudar isso?
Eu já trabalhei, junto com a Hannah (Marucci, também co-fundadora da Tenda das Candidatas), em uma proposta de lei em que, na justificativa sobre cotas de reservas de cadeiras, a incidência para 50% das cadeiras serem para mulheres, que aí não vai ter como fugir, vai ter que preencher as cadeiras. Mas quando a gente fala de mulher, a gente não está falando de uma categoria universal. Existem as mulheres brancas, as negras, as indígenas, as quilombolas, sendo que as mulheres negras são o maior grupo demográfico brasileiro.
(Mas) Quando a gente olha para o aumento do número de mulheres alcançando os cargos de poder, a gente vê que são mulheres brancas, a maioria. Se tiverem 100 mulheres, pode ter certeza que 85 são brancas. Então, tem alguma coisa errada, já que as mulheres negras são maioria (da população). Então, se colocar apenas 50% das cadeiras para mulheres, assim aleatório, sem considerar a interseccionalidade, sem considerar que somos diversas, sem considerar essa questão da proporcionalidade, das mulheres negras serem o maior grupo demográfico brasileiro, a gente vai pecar na elaboração dessa política pública. Então, eu advogo que a gente que ter reservas de cadeiras para mulheres, 50%, sendo que desses 50%, 25% para mulheres negras. (…)
Até hoje o que a gente tem de pesquisa, com números, com quantidades suficientes para embasar a gente de alguma coisa, é só que os brancos não sabem governar. Isso a gente pode dizer com toda a certeza, porque desde o início, da inauguração dos brancos no Brasil… Desde a época da escravidão, passando pela República Velha, a Nova, todas elas até hoje são homens brancos que estão no poder e a gente tem visto tudo que tem acontecido. Se alguém me perguntar o que eu poderia dizer de uma visão ampla, total de cenários do Brasil, eu diria, com toda certeza: homens brancos não sabem governar. Eles precisam urgentemente entender isso. Seria bom que eles entendessem e saíssem de boa vontade, mas eles nunca vão fazer isso. Então, a gente vai ter que lutar.
Agora, se perguntar: mas e as mulheres negras? Elas sabem governar? As mulheres sabem governar? A gente teve a Dilma (Rousseff, ex-presidente), tem 3 deputadas aqui, 2 ali, 10 ali. Não dá para dizer se mulheres sabem governar, porque uma foi presidente, porque teve uma governadora lá no outro estado, aí teve uma prefeita ali… Não dá. Eu preciso de números. Eu preciso de muita mulher, muitos negros, muitas mulheres negras governando durante muito tempo para, então, a gente fazer essa análise e falar quem governa melhor, né? (risos) Mas a gente ainda tá nesse momento de lutar para que a gente possa ter o direito de ter esses números e fazer essa análise.
Mas eu já, precipitadamente, advogo que sim, governam melhor, porque se você for pegar esses pequenos números e for olhar o que eles fazem, eles fazem mais, eles fazem melhor. Talvez porque tenham conhecido o que é sofrer preconceito na pele. Na sociedade brasileira, a maioria das pessoas pobres são negras. Classe, no Brasil, tem cor e gênero, são as mulheres e os negros as classes menos favorecidas, as pessoas mais pobres.
Essa questão da sub-representação passa por entender as teorias da representação, passa por entender a questão do déficit democrático e passa por pensar o futuro olhando para o passado e para o presente. E aí, é uma série de coisas. São muitos gargalos. Não dá pra, em uma entrevista só, eu falar de tudo.
DN – Aqui no Ceará, está ocorrendo julgamento da primeira chapa de deputados estaduais, que pode ser cassada por fraude à cota de gênero. Caso se confirme a decisão de cassação, duas mulheres saem da Assembleia e podem ser substituídas por homens. Isso está fazendo com que os próprios parlamentares, que podem ser cassados, estejam apontando uma “contradição” na cota. Qual a tua avaliação sobre essa dita “contradição”?
Olha, eu vou ser bem sincera: não existe contradição não. (…) Porque assim, fraude às cotas não podem ser feitas nem pelas mulheres. Então, por exemplo, tem mulheres ajudando partidos a fraudarem as cotas, deve ter, né? Isso daí não sou eu que vou dizer isso, a Justiça precisa… O Ministério Público fiscaliza e denuncia e o juiz vai julgar. Eu não vi o processo. Mas enfim, a gente precisa entender que a legislação precisa ser cumprida.
Então, por exemplo, eu sou uma mulher (candidata). Eu não sou a única mulher, mas só que eu sou a mulher escolhida pelos homens do partido, que foram lá e falaram assim ‘a gente vai limar todas as outras, mas vamos investir na da Laura. Se a gente botar 7 homens e botar Laura, a gente já diz que é ‘feministo’”. E aí, eu vou e entro, recebo um dinheirão e as minhas companheiras receberam nada, tem essa possibilidade. Porque a distribuição (de recursos tem que ser) proporcional, não é para pegar e dar tudo para uma mulher só. A não ser que ela esteja concorrendo a um cargo que seja majoritário, é proporcional.
As cotas não estão aí para passar pano para ninguém. As cotas não estão aí para dizer que todas as pessoas negras são honestas, que todas as mulheres são honestas, não. As cotas estão aí para serem cumpridas e as pessoas que não cumprirem as cotas, sejam elas quem forem, precisam sair. Precisam ser investigadas, precisam ser denunciadas, precisam ser punidas.
Eu não vejo, inclusive como advogada, eu não consigo olhar e ver contradição, nenhuma contradição. Elas vão sair porque provavelmente… Eu não li o processo, mas elas vão sair porque faziam parte de uma chapa e a chapa toda está sendo cassada, então elas estão sendo cassadas juntas.
DN – Em alguns casos usa-se o fato de ter uma mulher eleita na chapa para tentar provar que não houve candidatura fictícia…
Isto é tokenização. É a mesma coisa que falar ‘como que eu sou racista, se eu tenho até um amigo negro’ ou ‘o meu marido é negro, eu não sou racista, não’. Ou ‘como eu sou machista, se tenho até mulher, eu tenho uma esposa, filhas’. É mais ou menos isso. Eles vem com essas desculpas. Vai cassar e vai entrar a chapa que não fraudou. Se não entraram mulheres, mas elas receberam (recursos) direitinho… Calhou de não conseguir, porque também tem uma questão que não é só a campanha…
A campanha é para visibilizar o trabalho que você faz na política e o que você quer fazer. Muitas mulheres conseguem fazer uma campanha, outras não conseguem, outras não conseguem entrar num curral eleitoral de uma milícia (por exemplo). Receberam dinheiro, fizeram campanha, mas não conseguiram ultrapassar as mentes e os corações que já estão capturados pelo machismo, pelo ‘eu não vou votar em mulher’. Então, tem muitas coisas para além disso, cada caso é um caso. (…)
Como advogada, eu não posso nem estar falando sobre esse processo, porque eu não li. É uma irresponsabilidade um advogado dar um parecer sobre um processo que ele não leu. Então, eu não li o processo, mas politicamente falando, a dizer que uma chapa foi cassada porque fraudou as cotas, mesmo tendo mulheres e aí vai entrar uma outra chapa, que só tinha homens, que só tem homens. Mas, tá, esse partido aqui que vai entrar, fraudou as cotas? Não? Mulheres receberam (recursos)? Receberam. Fizeram campanha? Fizeram. Não entraram por que? Porque as pessoas não votaram nela, porque elas não fizeram uma boa campanha, tudo bem.
Não cabe essa premissa, que eles estão querendo trazer de ‘ah, está vendo, esse é um problema das cotas’. Porque aí tudo é problema das cotas, nunca é deles o problema. O problema é a ação afirmativa de política pública, que foi estudada por pessoas especialistas há anos, porque não é criada da noite para o dia, é fruto de muita luta dos grupos marginalizados. Aí, esses homens chegam ontem, nunca leram nem a respeito, (e dizem) ‘porque isso daí ó, tem um problema, tem uma contradição nessa lei que precisa ser resolvido’.
Aí já é um motivo para acabar, igual quando na época das (denúncias de candidaturas) laranjas. (…) Sendo que tem que investigar caso por caso. E se tiver que punir, pune. Pune a fraudadora, pune (a candidata) laranja, que foi laranja sabendo que ia ser laranja, tem que ser punida. E tem que ser punido o dirigente que deu dinheiro pra ela, que combinou com ela, e todos os outros envolvidos. Mas não tem que acabar com as cotas. O que uma coisa tem a ver com a outra?
DN – Nesse cenário, a Tenda das Candidatas surge como espaço de formação de mulheres para esse contexto de campanha eleitoral e mesmo de mandato. Por que vocês tomaram essa iniciativa?
Nós temos 4 frentes. A Tenda foi criada em 2020, durante a pandemia, quando a gente olhou para aquele cenário… Era a primeira eleição para vereadores após o assassinato da Marielle. Então, as mulheres, sobretudo as mulheres negras, que se sentiram extremamente atacada com esse assassinato, combinaram de se candidatar, (disseram) ‘não vamos retroceder, vamos avançar’. E aí, de repente, a pandemia. Mulheres negras fazem campanha na rua, boca a boca… E não podia estar na rua. Então foi uma coisa muito difícil. A Hannah eu já conhecia de uma incidência que a gente estava fazendo e a gente já tinha trabalhado em campanha, então a gente sabia fazer campanha. E a gente resolveu fazer 10 campanhas… A gente montou uma equipe e a gente fez dez campanhas de mulheres, a maioria de mulheres negras, uma mulher trans, mulheres LGBTQIA+, quilombola. A gente conseguiu eleger 2, colocamos 4 suplentes e uma dessas suplências tomou posse esse ano.
Então, a Tenda nasceu dessa vontade de colocar a mão na massa, porque nós duas pesquisamos a mesma coisa, basicamente, e a gente olhando aquilo tudo, no meio da pandemia, a gente vai morrer e eu estou aqui com um monte de livro. Tão lindo eu lendo os livrinho aqui, sabendo as respostas das coisas, porque o mundo está assim, porque o Brasil está assado, escrevendo artigo, escrevendo capítulo de livro… Tá mas e aí, querida? O que a gente tem que fazer? As mulheres tem que estar no poder. Tá, mas como faz? Os partidos não ajudam, os partidos atrapalham.
Então, a gente tem que fazer alguma coisa para botar a mão na massa. Foi o que a gente fez, botou a mão na massa e teve esses resultados positivos. A Tenda não era para ser um projeto social. A gente se uniu para fazer isso. Só que a gente achou bacana colocar nas redes sociais por diversos motivos. Um deles seria fazer com que as pessoas sentissem vontade de fazer a mesma coisa, de serem voluntários de campanhas de mulheres, dentro dos seus talentos. E também para a gente usar o nosso capital social e político para dar visibilidade para aquelas mulheres.
E acabou que deu tão certo e a gente resolveu que tinha que fazer isso. Foi uma coisa importante. As pessoas se dão muita importância, né? (risos) Mas, no nosso caso, a gente não se deu tanta importância. (…) Aí alguém chegou pra gente e falou ‘nossa, mas isso que vocês estão fazendo, ninguém fez no Brasil’. Porque as organizações que faziam treinamento para candidaturas, não estavam focadas em candidaturas de baixo custo, em candidaturas de mulheres, mulheres negras, quilombolas, a nada disso. A essas realidades. Então, a gente é a primeira iniciativa que faz isso. (…) A gente acredita que é preciso colocar a mão na massa e foi a forma que a gente encontrou de fazer isso.
A gente construiu essa primeira frente porque a gente formou essas mulheres, além de ajudar a fazer a campanha delas, a gente formou essas mulheres e as suas equipes. Além delas, que eram dez, a gente teve quase 400 inscrições, então as aulas eram todas online, ao vivo no YouTube. Então, as outras que não foram selecionadas, elas podiam assistir, e essas aulas estão disponíveis até hoje no nosso canal no YouTube. Então, a gente tem essa frente, que é a formação de mulheres, (na qual) a gente ensina mulheres, as que querem se candidatar e as que querem ser voluntárias. Como fazer campanha, como ajudar e é toda voltada para esse tipo de campanha, campanha de mulher negra, campanha de de mulheres LGBTs, campanhas de quilombolas, de indígenas.
A segunda frente é nossa incidência política e legislativa, que a gente faz também desde o início. Reforma eleitoral, estamos sempre fazendo incidência contra essas PECs. A gente faz um incidência com relação a direitos políticos de mulheres e negros no Brasil. A gente faz cartilha, dá entrevista, dá parecer, faz nota técnica, a gente tá em diversas coalizões atuando nessas incidências que dizem respeito aos direitos políticos das mulheres no Brasil, sobretudo das mulheres negras.
Uma outra frente é olhar para essas mulheres depois das eleições, as mulheres não eleitas. O que a gente faz com essas mulheres? É mais uma formação que a gente tem, que é pioneira no Brasil, a gente não conhece nenhuma que faça esse tipo de formação, que é pegar essas mulheres e entender que elas durante a campanha, elas foram para a praça pública, com suas pautas. Elas acabaram ganhando mais capital político do que elas já tinham. Se não tinham, passaram a ter. E faz o que com isso? Joga fora? Se coloca no lugar de derrotada? De ‘fui derrotada, não ganhei eleição, nunca mais vou disputar’.
Não, querida, você não foi derrotada. Você fez sua primeira eleição… Você fez sua primeira eleição, você conhecia 500 pessoas, agora você conhece 15 mil. Então, você não vai pegar isso e jogar no lixo, você vai continuar dialogando. Então, a gente acolhe essas mulheres, porque todas elas sofrem violência política de gênero e raça.
Não conheço nenhuma mulher atendida na Tenda… Pode existir quem não queira falar. Falar quem fez a agressão, se foi eleitor, se foi no partido, se foi em casa, onde foi. Mas todas elas sofreram violência política de gênero e as negras sofreram violência política de gênero e raça.
E agora a gente também tem a formação com as jovens, porque a gente entendeu que no Brasil, sobretudo por conta dessa última eleição, a juventude progressista precisa ser colocada em cena, mas no campo político eleitoral partidário. A Tenda é suprapartidária, mas a gente tem uma carta de princípios, a gente atua pelos direitos humanos. Direitos humanos não são comunistas, direitos humanos são liberais, inclusive. (…) Dentro desse nicho progressista de defensora dos direitos humanos, a gente vê que os jovens…
A gente não vê jovem de 18 anos vereador sendo progressista. Você vê os fascistas sendo. E isso não é agora, é há anos, há muito tempo. Você vê os herdeiros das ‘capitanias hereditárias’. Você não vê as jovens, as mulheres LGBT, as meninas lésbicas, as meninas negras, você não vê. E, ao contrário de muito tempo atrás, elas estão muito mais envolvidas na política no sentido não eleitoral. Não na política eleitoral, mas estão fazendo arte, estão na rua, estão na faculdade. (…)
Mas e aí, como a gente faz para trazer esses jovens para disputar a política eleitoral partidária? (…) A gente entendeu que precisa fazer com que essas jovens entendam que elas têm que estar na política sim, que elas têm o direito. Elas podem, não estar, mas eu preciso fazer com que elas entendam que esse também é meu lugar, se eu quiser estar. Se eu quiser ser presidente, se eu quiser ser vereadora, eu posso ser sim. Lá na Tenda, elas vão me ensinar como eu faço para chegar lá. Então, a gente hoje está trabalhando com essas quatro frentes que são importantes, mas também a gente trabalha contra a violência política de gênero e raça…
Eu até costumo falar que eu acho que é um pouco pleonasmo quando a gente fala que luta combatendo a sub representação política e luta combatendo a violência política de gênero e raça, sendo que a sub representação política já é uma violência simbólica. Ela existe por conta de todo um histórico de violência, de marginalização desses grupos.
DN – Você falou a respeito da violência política de gênero e raça, que é um tema muito importante e que está sendo mais discutido nos últimos tempos. E você disse que isso vem junto com combater a sub-representação. Como a gente muda esse cenário de violência política tão forte ainda contra pessoas negras e contra mulheres?
Eu costumo dizer que as mulheres negras, as mulheres são tão poucas nesses espaços, que quando todo mundo olha para elas na plenária, olham e vêem o que? Outsiders. ‘Você vê, só tem uma, todo mundo ali é homem, todo mundo ali é branco, aí está aquela mulher, está aquela preta ali, sozinha. Quer dizer, o lugar dela não é ali. Será que ela não se tocou nisso?’ Esse tipo de cenário leva as pessoas, que pensam com senso comum, a terem esse tipo de sentimento. A gente precisa colocar mais e mais mulheres lá, sobretudo porque quando a gente vê mulheres lá… Muitas mulheres, muitas mulheres negras, isso vai se tornar uma coisa comum.
A violência política vai acabar? Não sei, porque violência política não é só de gênero e raça, homens também sofrem violência política. Mas eu aposto que talvez melhore, porque as mulheres não fazem política com violência. Mulheres não fazem guerra, né? Tem uma coisa bélica que é muito dos homens. E não é porque nós nascemos com uma essência de paz e eles essencialmente são de guerra. Não, senhora. Não acredito em essencialismos, mas porque fomos socializados assim. O homem foi socializado para brigar. (…)
Eu acredito que a violência política pode diminuir até para os homens. A política vai ficar um lugar menos violento. A violência política diminui quando a política deixa de ser uma arena violenta, bélica, onde as pessoas estão lutando pelo poder, para fazer o que elas estão fazendo com o poder, quando na verdade, o poder não é para isso. Então, eu acredito muito nas mulheres, porque tem muitas mulheres que brigam, que são brigonas – não a ponto de mandar matar – mas que são e tudo bem. Mas há mais brigona assim na política que a gente conhece, não chega aos pés do mais mansinho, do mais doce, no sentido de violento, no sentido de fazer coisas antiéticas, corrupção, todas essas coisas aí.