Que linha imaginária exclui mulheres da imagem tão masculina do campeonato, se são tantas e em posições tão essenciais? Por Marília Moschovich, na coluna Mulher Alternativa Então é Natal; quer dizer, Copa. Então é Copa. Um evento internacional que faz girar toda uma economia própria como um trator sobre os direitos humanos — nada mais normal no capitalismo, devo dizer. Além de todas as questões frequentemente apontadas por setores críticos à realização da Copa do Mundo da FIFA no Brasil em meio a protestos diversos nas ruas de cidades-sede dos jogos, um outro aspecto parece estar sendo curiosamente ignorado: a Copa tem gênero. Não é preciso muito esforço para perceber que o gênero da Copa — apesar da palavra no feminino — é masculino. A Copa é um evento organizado por uma corporação feita por homens (a FIFA), intermediado por governos compostos majoritariamente por homens (mesmo quando a presidenta é mulher), que tem como mote um esporte associado mais frequentemente com a masculinidade e o público masculino. Alguém ainda não tinha sacado? Muitos dos produtos associados à Copa (e ao futebol) são direcionados a homens, não à toa. Tampouco é coincidência que a economia do sexo cresça em eventos do tipo. Mesmo ONGs internacionais que trabalham diretamente com homens para diminuir a desigualdade de gênero (como a Man UP Campaign) utilizam as copas do mundo como espaços de intervenção — pois sabem que seu público está ali. Onde estarão as mulheres, então, na Copa do Mundo de 2014? Provavelmente as veremos eleitas “musas” de torcidas quando brancas, magras e com corpos dentro de certo padrão; talvez as vejamos “mães” em homenagens de artilheiros que acabam de se tornar pais ou que se posicionam como filhos; mas o grosso delas, mesmo, pobres e negras, estará a serviço da máquina que faz funcionar o evento. Veremos mulheres vendendo comida em subempregos precários de empresas terceirizadas nos estádios. Veremos mulheres oferecendo serviços sexuais a brasileiros e estrangeiros que vêm aproveitar o país do futebol (e da sexualidade liberada) do imaginário internacional. Veremos mulheres nas ruas tentando vender artesanato a turistas. Veremos mulheres recebendo gente e entregando panfletos em aeroportos. Com muita sorte, conseguiremos avistar uma comentarista esportiva ou jornalista aqui e acolá. Mas há também as mulheres que não veremos; as mulheres invisíveis da economia de uma Copa do Mundo. Não veremos as mulheres que ficarão em casa com as crianças enquanto os maridos jogam futebol, assistem futebol, comentam futebol. Não veremos as mulheres trancadas na cozinha fazendo a pipoca para a família inteira, nem veremos as mulheres lavando louças enquanto o resto da casa sai às ruas para comemorar vitória com vuvuzelas de todos os tamanhos e cores. Não veremos as mulheres que trabalham nas empresas patrocinadoras ganhando 70% do salário de seus colegas homens. Nem veremos as que deixaram de ser promovidas porque desejavam um dia ter filhos. Não veremos as meninas oferecidas como produto em serviços sexuais. Que pano esconde essas mulheres? Que linha imaginária as exclui da imagem tão masculina da Copa do Mundo, se são tantas e em posições tão essenciais à realização do megaevento? Enquanto sociedade, quando construímos as percepções sobre o que significa “ser homem”, “ser mulher” e, junto a isso, o que consideramos como “masculinidade” e “feminilidade”, aos poucos nos colocamos em formas. Construídos nessas formas, também enquanto sujeitos nos identificamos com suas linhas gerais — mesmo quando as questionamos, ou quando procuramos romper com elas. Faz parte de nós essa espécie de enquadramento em identidades masculinas e femininas, em identidades como homens ou mulheres (ainda que não sejam essas duas as únicas possíveis em relação ao gênero). Isso quer dizer que, quando associamos o futebol à masculinidade, reforçamos que os homens sigam gostando de futebol e que as mulheres sigam não gostando; também invisibilizamos as mulheres que rompem com a regra e, sim, gostam de futebol. Ao mesmo tempo, desqualificamos as mulheres que procuram se inserir nesse meio (como foi feito com a bandeirinha Fernanda Colombo há alguns dias), apelando para sua feminilidade ou para sua suposta falta de feminilidade conforme nos convém. Mais do que reconhecer a existência das mulheres na estrutura geral da Copa do Mundo, é preciso desconstruir a associação imediata do futebol com a masculinidade. Essa associação — tão forte — é o que exclui, segrega e marginaliza as mulheres que, aos milhares, farão a Copa do Mundo acontecer. |
Fonte: Outras Palavras
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