*ROBERTO AMARAL e LUIZA ERUNDINA
O ensaio “Socialismo e Democracia”, publicado pela Fundação João Mangabeira, fazendo o balanço da última década, antecipou questões hoje postas pelas ruas, ao tratar da necessidade de fortalecer os mecanismos de participação popular na definição dos rumos da nação.
Parte foi escrita antes de 2002 e da vitória da coalizão de centro-esquerda que levou Lula à Presidência e, posteriormente, à eleição de Dilma Rousseff. O apoio a Lula, fenômeno político-eleitoral sem dúvida tão relevante quanto a saga varguista, não significou necessariamente a consagração de nossas políticas, embora represente uma vitória das esquerdas brasileiras.
Esta década demonstrou as limitações insuperáveis do modelo neoliberal puro, de um lado. De outro, a possibilidade de avanços sociais nos países periféricos, mesmo nos quadros da desfavorável correlação de forças internacional.
Mas é igualmente um fato político, neste caso lamentável, que as forças da esquerda não tenham sabido capitalizar esses avanços, renunciando a questões importantes do debate ideológico, como a defesa da democracia participativa –a soberania nas mãos do povo e por ele legitimada. Democracia, em si, é bem inquestionável; mas a democracia representativa não é a sua única e melhor expressão.
As ruas revelaram a justa insatisfação com a degradação política da vida brasileira. A mobilização, não a arruaça, terminou por concretizar a obra renunciada pelos partidos: inserir na pauta política as reformas pelas quais o país clama desde os tempos das “reformas de base” do governo Goulart. Especialmente, uma reforma política que avance da falsidade representativa de hoje para a participação direta da cidadania e que assegure um sistema de representação verdadeiro, a relação mais genuína e fluente entre eleitos e eleitores, entre outras iniciativas.
A democracia representativa está em crise e, com ela, o mandato eleitoral, que, carente de legitimidade, cada vez menos representa a vontade do eleitor. A crise do sistema representativo no Brasil se deve exatamente ao fato de que a soberania popular tornou-se mero enunciado constitucional e, na prática, seu exercício não se efetiva, visto que os mecanismos de democracia direta e participativa, previstos no art. 14 da Constituição Federal –plebiscito, referendo e iniciativa popular–, nem sequer foram regulamentados até hoje. A representação política está em crise porque os partidos romperam o compromisso com as bases eleitorais e perderam a confiança da militância.
As assembleias, nominalmente eleitas pelo povo, substituem a vontade dos representados pela dos representantes. Crescentemente, vem sendo anulada a separação de poderes e cada vez mais os Executivos, quando não o sobranceiro Judiciário, atuam como poder legiferante e controlam a pauta do Congresso. Nesse horizonte, a reforma política impõe-se, mas não pode ser operada como simples artifício jurídico nem pode estar atrelada a interesses momentâneos.
As circunstâncias pedem que avancemos, estimulando a autocrítica e o debate na esquerda. Que tarefa nos caberia hoje após o que vimos nas ruas? Certamente, a compreensão de que não adiantará nem sequer falar em reformas se, antes, o Brasil e seus dirigentes políticos não se unirem em torno da construção de um projeto nacional que resulte do debate e da participação de todo o nosso povo. Diria Darcy Ribeiro que este é um bom momento para “passar o país a limpo”. É disso que as ruas se ressentem.
*ROBERTO AMARAL, 73, é vice-presidente Nacional do PSB e LUIZA ERUNDINA, 79, é deputada federal pelo PSB de São Paulo
*Artigo publicado na seção Tendências & Debates, do Jornal Folha de S. Paulo, dia 03 de setembro de 2013