As reflexões aconteceram no Workshop “Femicídio”, promovido pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) nos dias 21 e 22 de novembro. Um dia após especialistas debaterem o projeto de lei que cria a figura do “feminicídio” no Senado Federal, juízes, magistrados, promotores, delegados, inspetores, peritos e especialistas se reuniram no Rio de Janeiro para discutir também o problema do assassinato de mulheres em contexto de violência de gênero no Brasil e afirmaram: é preciso tirá-lo da invisibilidade com urgência. As estratégias para trazer à tona a questão, que ganha cada vez mais atenção de agentes públicos, passam desde o debate sobre a tipificação penal, prevista pelo Projeto de Lei do Senado nº 292/2013, até a adoção de protocolos para investigação e processamento desses crimes. Nesse sentido, os conceitos de “feminicidio” e “femicidio” surgiram justamente com o fim político de reconhecer e dar visibilidade à discriminação, opressão, desigualdade e violência sistemática contra as mulheres que, na sua forma mais extrema, culmina na morte, conforme explicou a coordenadora de Acesso à Justiça e Combate à Violência, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, Aline Yamamoto. Para enfrentar este problema social endêmico, segundo a coordenadora da SPM-PR, é preciso diferenciar este assassinato dos demais e combater sua principal causa: a desigualdade entre os gêneros, traduzida principalmente, no Brasil, em violência doméstica. Com mais visibilidade, a expectativa é que se possa criar uma política criminal com perspectiva de gênero e assegurar o acesso à Justiça para todas as mulheres. Isto porque é muito comum que, ante a invisibilidade da motivação de gênero, a mulher que é vítima de violência acabe revitimizada quando recorre ao Estado e à Justiça, sendo responsabilizada pela violência que sofreu.
“É muito comum, por exemplo, que o réu confesse um homicídio, mas diga que não tinha intenção, que amava a mulher. E, com isso, a discussão no processo fica na questão do dolo – o que está muito ligado a considerar esse um crime passional, a considerar que o homem matou porque amava a mulher. E não é o caso; este é um crime de ódio, motivado pela sensação de propriedade sobre a mulher, e isso, muitas vezes, fica visível pelo requinte de crueldade, pela intenção de destruição do corpo da mulher”, frisou a coordenadora da SPM, Aline Yamamoto. Para distinguir quando há um feminicídio, o médico forense e especialista espanhol Juan Manuel Cartagena Pasto elencou alguns elementos que podem ligar o sinal de alerta na cena de um crime – como a presença de corpos de mulheres nus ou seminus, cenários sexualizados, a ocorrência de agressão sexual prévia ou a constatação de que havia um contínuo de violência, que pode ser descoberto se for checado se havia um histórico de queixas anteriores pela vítima, ou mesmo por meio da perícia, verificando se a vítima apresentava lesões antigas. Investigação e perícia Para garantir a perspectiva de gênero na apuração destes crimes é importante que o profissional esteja sensibilizado para a componente de gênero, desde a perícia até a sentença. Nesse sentido, os presentes no workshop realizado pela Emerj receberam orientações do especialista espanhol, que apresentou o Guia de Recomendações para a investigação Eficaz do Feminicídio. A publicação traz um compilado dos erros mais frequentes cometidos nas investigações e processos nos casos de feminicídio e traça recomendações para superar tais problemas. O perito explicou que, embora os termos e conceitos de ‘feminicídio’ ou ‘femicídio’ possam variar, as características deste tipo de crime são bastante comuns em todos os países latino-americanos, onde a forma mais recorrente é o feminicídio íntimo – o assassinato de uma mulher por alguém com quem manteve ou mantinha relação íntima de afeto. As características semelhantes, porém, não significam que o guia é um protocolo pronto. Conforme salientou o especialista, a intenção é que a publicação seja uma ferramenta para que cada país desenvolva seus próprios protocolos, de acordo com suas especificidades. Portaria do Rio Ante a necessidade de protocolos específicos, a Portaria nº 620 editada no Rio de Janeiro pela delegada Marta Rocha foi considerada como pioneira e um exemplo a ser expandido. Instaurada em março deste ano, a proposta da portaria é que, a partir de alguns critérios, a apuração do homicídio de uma mulher seja qualificada na perspectiva de gênero para garantir tanto a coleta de provas, para esclarecer o caso individual, quanto a produção de dados que possam embasar ações estratégicas para coibir esse tipo de crime. O documento determina que a autoridade policial, “ao tomar conhecimento de morte violenta ou suspeita, cuja vítima seja mulher, adote algumas providências para que fique ou não evidenciada a violência em razão de gênero”, entre elas estão: colher o depoimento de familiares e pessoas próximas da vítima e produzir um relatório sobre seu histórico para informar se a mulher já havia sofrido anteriormente algum tipo de violência e ameaça. A Portaria também estabelece diretrizes para os médicos legistas, a fim de garantir que o laudo do IML (Instituto Médico Legal) esclareça pontos importantes para essa distinção, como, por exemplo: se foram detectadas lesões antigas, se a vítima estava grávida, realizou aborto ou possuía lesões de natureza sexual ou de defesa. Além disso, determina que o IML colha material genético para realização posterior de exames de DNA, se necessário. “Este tema já faz parte também da grade curricular do curso de formação da Polícia Civil. O local do crime será visto uma única vez, então precisamos tirar tudo que pudermos de lá”, frisou a delegada. Lei Maria da Penha Ao abrir o evento que abrigou essas reflexões, a juíza Adriana Ramos de Mello lembrou os dados do Mapa da Violência 2012, que colocam o o Brasil em 7º lugar no ranking de 84 nações em homicídios de mulheres: entre 1980 e 2010, mais de 92 mil mulheres foram assassinadas, sendo 43,7 mil só na última década – ou seja, em média, a cada 2 horas uma brasileira foi morta por condições violentas no País. Embora a preocupação com a gravidade e dimensão do feminicídio no Brasil tenha marcado o evento, a avaliação da eficácia e necessidade de se efetivar a implementação da Lei Maria da Penha também foi bastante apontada nos debates, uma vez que a legislação traz mecanismos para que o Estado e a sociedade ajudem a mulher a romper o ciclo de violência antes que ele possa chegar ao extremo do assassinato. “Lei nenhuma veio com a finalidade específica de erradicar crimes; se fosse assim, a gente não teria mais o Código Penal, que é de 1940. É claro que a Lei Maria da Penha tem um caráter preventivo, mas não podemos dizer que ela não funciona, ela está tornando a violência mais visível. O tema da nossa investigação e reflexão tem que ser a desigualdade de poder entre os gêneros, que gera essa violência que a Lei está trazendo à tona”, afirmou a juíza, que preside o Fórum Permanente de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero e titular do 1º Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Rio de Janeiro. O workshop foi realizado em adesão à campanha “16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres”, que tem início no dia 25 de novembro, Dia Internacional pelo Fim da Violência contra a Mulher, e vai até o dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos. Por Débora Prado |
Fonte: Portal Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha
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