Por Cynthia Semíramis Dentre as diversas mobilizações, passeatas e marchas ocorridas nos últimos meses, chamam a atenção as manifestações que envolvem direitos das mulheres: Marcha das Vadias, a Marcha pela Humanização do Parto e a Marcha Contra a Mídia Machista. A Marcha das Vadias se iniciou quando um policial, representante do Estado, optou por culpar as roupas e comportamento das vítimas pelo estupro sofrido, em vez de fazer o seu trabalho de criticar e punir o agressor. A Marcha pela Humanização do Parto se organizou quando o Conselho de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) aprovou resoluções que limitam partos humanizados. Essas providências configuram uma excessiva e indevida intervenção médica nas gestações e partos que não são de risco, tornando o nascimento um procedimento necessariamente cirúrgico e sem participação da gestante, além de mascarar os casos de violência obstétrica. A Marcha Contra a Mídia Machista se insurgiu contra a imagem das mulheres na mídia, seja na abordagem jornalística (especialmente em relação ao jornalismo das Olimpíadas, que ignorava o desempenho das atletas para se focar nos seus atributos estéticos), seja por anúncios publicitários que perpetuam estereótipos ofensivos e por vezes legitimam assédio e estupro. Machismo e capitalismo na sociedade atual Durante séculos, mulheres não foram vistas como merecedoras dos mesmos direitos que os homens. A sociedade foi organizada para negar seus direitos, estabelecendo papéis diferentes para homens e mulheres. Na divisão desses papéis de gênero, as mulheres foram subordinadas aos homens, caracterizando uma cultura machista na qual o homem tem mais poder e mais direitos. É importante destacar que, na sociedade ocidental atual, o machismo e o capitalismo estão intimamente ligados. O machismo dos séculos anteriores foi reforçado quando da ascensão da burguesia ao poder, trazendo novas práticas. Uma delas foi a mecanização do trabalho e a mudança da estrutura econômica, com predomínio de indústrias e a urbanização. Nesse processo, as primeiras indústrias automatizaram o trabalho que era atribuído às mulheres (como a produção de tecidos e velas), esvaziando sua importância econômica. A família legitimada pelo Estado burguês é a nuclear, caracterizada por pai, mãe e filhos, com diferenciações entre seus membros. A publicidade ilustra esse conceito com a família de comercial de margarina. O homem deve ser o chefe e provedor. Legalmente, é o líder da família, e existe um código de conduta para agir como tal: não pode chorar, deve solucionar todos os problemas, não pode hesitar, não pode se subordinar a ninguém, não pode ser afetuoso, deve usar roupas sóbrias, deve ser o único provedor. A mulher, subordinada a ele, é que vai gerenciar o espaço privado, decidindo como administrar o dinheiro do trabalho do marido. Os filhos também se subordinam ao homem, e devem aprender a desempenhar seus papéis de gênero adequadamente, sob pena de serem repudiados e expulsos da família. Para esse sistema funcionar, a mulher tem de ser dócil, submissa ao marido, só se realizar na maternidade e nos cuidados com a família. E, o mais importante: ela precisa gastar. A função da mulher em uma sociedade capitalista é gastar dinheiro, fazer compras, de modo a manter a estrutura econômica funcionando. Se ela não mais produz o que a família precisa, deve compensar isso fazendo compras. Se ela se sente infeliz, precisa ser estimulada a fazer compras para compensar suas frustrações. Se o marido trabalha 14 horas por dia, ela deve fazer jus ao esforço dele gastando o dinheiro para trazer conforto ao homem que lhe propicia um lar. Obviamente, há várias falhas nesse raciocínio. Ele não acompanha as mudanças sociais, econômicas e jurídicas das últimas décadas, que apontam outras possibilidades. Não inclui famílias homoafetivas, monoparentais, sem filhos ou extensas, e se esquece que mulheres pobres sempre trabalharam e não têm como seguir à risca o modelo “rainha do lar”. Mas, apesar do óbvio desrespeito à diversidade e à realidade, é o imaginário desse modelo machista de relações de gênero que é imposto a todas as pessoas através de pressão religiosa e do discurso médico e científico propagandeados pelos meios de comunicação de massa. Devido à sua forte influência em todas as camadas sociais, são eles os maiores responsáveis por manter o machismo em nossa sociedade. A contribuição da mídia para manutenção do machismo Revistas e sites voltados para o público feminino, em sua maioria, ensinam as mulheres a se enquadrarem em um modelo bastante opressivo. Inventam que elas só devem se preocupar com assuntos sérios (como direitos) depois que lutarem para obter corpos perfeitos, pois estes serão o passaporte para se casar ou obter uma promoção no emprego. Estimulam habilidades domésticas, como cozinhar, para dar prazer aos parentes, filhos e marido (enquanto elas precisam viver de luz para emagrecerem até atingir o ideal de beleza). Criam “defeitos” estéticos para fazerem as mulheres se sentirem inseguras e, em seguida, vendem fórmulas para solucioná-los (podemos falar de celulite, que homens e mulheres têm, mas só nas mulheres que se torna um “defeito”; podemos falar também do racismo embutido em clareamentos de pele ou alisamento de cabelos, e da misoginia que alavanca a venda de desodorantes para disfarçar o odor vaginal). Fazem manuais ensinando a agradar um homem na cama (e até a fingir orgasmos), mas não ensinam as mulheres a se satisfazerem sexualmente nem se lembram de que não são todas as mulheres que são heterossexuais ou têm uma vulva, como é o caso, respectivamente, das mulheres lésbicas e das transexuais. Para dar um verniz mínimo de legitimidade a esses absurdos, a mídia tradicional se utiliza do discurso das autoridades: médicos, sociólogos, filósofos, religiosos, juristas, todos dizendo como as mulheres devem ser e agir para corresponder ao que determinada divindade espera dela ou ao que a ciência diz que ela deve ser. Na verdade, esses discursos perpetuam a ordem social machista. A maternidade é considerada sagrada, e a todo momento as autoridades lembram o quanto mães devem ser abnegadas. A cada caso de gravidez resultante de estupro de meninas de dez anos, jornalistas desprezam questões legais (o aborto é permitido em casos de estupro) e atuam como porta-vozes de grupos religiosos para reproduzir comentários contra o aborto, alegando que o destino das mulheres é a maternidade. Ao mesmo tempo, o discurso médico trata a gravidez e o parto como uma situação anormal que precisa ser intensamente medicalizada, negando a participação ativa das mulheres no processo de gestação. Ao fazerem isso, invertem prioridades: a mulher adulta e capaz passa a ser menos importante que um embrião ou feto – sendo que este só se tornará pessoa após o nascimento. Há, ainda, a questão da imprensa deslegitimar quem discorda dela: se a pessoa ou grupo não se enquadra em sua ideologia, se está chamando atenção para alguma desigualdade, fazendo alguma reivindicação, a mídia atua no sentido de desqualificar esse discurso, procurando ridicularizar seus emissores e manter a ordem machista. Podemos lembrar aqui da perseguição midiática às feministas: a aparência das militantes é criticada, suas palavras são distorcidas e chega-se ao ponto de divulgar movimentos antifeministas como feministas. Também podemos lembrar das dificuldades que pessoas negras, homossexuais, transexuais encontram para serem retratadas com dignidade nos meios de comunicação. A regra é sempre estereotipar ou ridicularizar como forma de constranger essas pessoas a aceitarem os papéis que lhes foram determinados. Nota-se, assim, que a mídia tradicional mantém os papéis de gênero, contribuindo para a manutenção do machismo. O mundo mudou, mulheres conquistaram direitos e modificaram práticas sociais. Porém, não há na mídia tradicional a capacidade de perceber e assimilar essas mudanças, porque é o modelo antigo de papéis de gênero, bastante machista, que precisa ser divulgado para sustentar a todo custo uma estrutura econômica e social obsoleta. Combatendo o machismo na mídia A resistência a esse modelo machista, pouco adaptado às necessidades atuais, passa necessariamente pela mídia. Não se trata apenas de fazer uma crítica de conteúdo ou abordagem. É necessário principalmente divulgar e incentivar abordagens menos machistas e mostrar que é possível um mundo diferente, mais diversificado e respeitoso em relação a direitos humanos. Estamos em uma fase de confronto de valores. A mídia tradicional vem cada vez mais sendo dominada por grupos religiosos (que são bastante refratários aos direitos das mulheres). Seu conteúdo vem se tornando mais conservador, machista e homofóbico. Há o reforço a papéis de gênero e valores do século XIX, como a valorização da virgindade e o repúdio a sexualidades e práticas não focadas em procriação, além do incentivo a atividades diferentes para meninos e meninas. Cabe à mídia alternativa, preocupada com questões sociais, tomar para si a luta por uma sociedade menos restritiva e excludente para todas as pessoas. As manifestações críticas estão nas ruas, redes sociais, revistas e nos sites não hegemônicos, e precisam ser divulgadas e debatidas. Do contrário, o que se tem é o recrudescimento de um modelo econômico e social machista que limita possibilidades e nega todas as conquistas de direitos humanos, inclusive os direitos humanos das mulheres, das últimas décadas. |
Fonte: Revista Forum
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