Quem ouve com atenção, se espanta. Está nas letras de ícones da MPB, no sertanejo de raiz e no universitário, no funk pancadão e no rock. Está no rap, no pagode e no brega, indiscriminadamente, a aproximar compositores brasileiros de todos os gêneros musicais e de todas as décadas: a misoginia, sempre a ecoar em tantos versos que incitam a violência contra a mulher.
A voz que ameaça “se ela vacilar, vou dar um castigo nela, (…) quebrar cinco dentes e quatro costelas” é de Zeca Pagodinho. Martinho da Vila cantou que “essa nega, pra ser minha, vai ter muito que sofrer, apanhar quando merece, apanhar sem merecer”. Não estão sós. João Bosco, Noel Rosa, Dorival Caymmi, Moreira da Silva e Sinhô também já escreveram versos de ameaça à integridade física de uma mulher. “Temos uma história da música popular brasileira que passa muito pelos homens e, vivendo em uma sociedade machista, necessariamente vai passar por uma visão machista”, constata a cantora e compositora Bia Nogueira, produtora do Sonora – Ciclo Internacional de Compositoras e do Mulheres Criando, ambos voltados a compositoras mulheres. “Existe uma falsa ideia sobre a postura dos artistas, de que são mais arejados, e na arte tem menos machismo. Isso é mentira. O que há é mais espaço para a reflexão”, observa. Na música brasileira, há feminicídios assumidos, mas mascarados pela romantização do assassinato “passional”, como o homem de “O Julgamento” (Amado Batista), que “atirava sem parar” porque “ninguém sofre uma traição e se cala pra pensar”. A mesma ideia entoada por Sidney Magal no refrão “se te agarro com outro, te mato”. É por isso que o aparente romantismo de Vinicius de Moraes em “Minha Namorada” soa como intimidador sentimento de posse: “você tem que me fazer um juramento de só ter um pensamento, ser só minha até morrer”. A canção coube perfeitamente como trilha da peça “Rosa Choque”, dos Conectores, justamente na cena em que o homem quer justificar ter assassinado a namorada. Menos explícitas também são as baladas sertanejas sobre forçar o consentimento embebedando garotas, ao estilo “tequila, whisky e vodka, com esse trio eu sei que eu vou te pegar” (Trio Brivana), insistindo quando “você me fala que não”, mas “eu sei que você me quer” (MC Biel, que teve de pedir desculpas pelo assédio a uma jornalista). Essas e outras pérolas do assédio preparam o terreno para clipes como “Tudo de Bom”, lançado em 2015 pelo MC Livinho, em que uma garota é perseguida por homens mascarados, escapa da tentativa de estupro, mas se dá conta de que o seu perseguidor é um cara por quem ela estava a fim. E vai atrás dele. “O estupro é romantizado, isso é muito perigoso”, diz a pesquisadora Bárbara Caldeira, que investiga as relações entre a mídia e a violência contra a mulher – em especial, como a mídia impressa constrói vítimas e agressores em casos de assassinato de mulheres em série ou por pai ou marido. A música, como o cinema, as séries, novelas e o teatro, são manifestações culturais que muitas vezes reproduzem a cultura do estupro – uma expressão que, às custas de muita dor, agora tornou-se conhecida da sociedade brasileira. Não que a cultura do estupro seja nova, ela remonta à colonização, mas só agora parece visível. Ou, como diz a pesquisadora, aos poucos, começa-se enfim a entender que a violência contra a mulher não é uma soma de casos privados e isolados. “É uma forma de se livrar da responsabilidade: quando não se reconhece a violência contra a mulher como um problema público, não se tem a obrigação de se lidar com ela”, avalia. Para Caldeira, portanto, a liberdade de expressão “precisa ser pensada em contraponto ao respeito à dignidade humana”. Reforço. A estudiosa comenta que, “quando se diz que essas músicas podem incitar a violência contra a mulher, ouve-se: ‘nossa, não é assim’”. Ela contrapõe que, embora a relação entre ouvir música e praticar a violência não seja imediata, não é inofensiva. “O problema do teor machista e misógino dessas letras é ajudar a banalizar a violência contra a mulher em uma sociedade em que isso já é naturalizado. Então, opera por reforço”, diz. “Muitas pessoas não prestam atenção na letra e apreciam pela sonoridade; vejo que não é uma relação direta por um lado. Por outro, por que escrevem sobre isso? Porque é o que veem, o que ouvem, é naturalizado”, acrescenta a artista e professora Nina Caetano, conhecida como DJ Shaitemi Muganga, chamando a atenção para o conteúdo ideológico desse tipo de letra. “Se a gente não repensa e critica isso, é como se estivesse descolada da ideologia. O fato de ser uma ideologia aceita e naturalizada não quer dizer que não esteja ideologicamente envolvida. As pessoas acham que ideologia é só a esquerda. A dominante você não percebe porque está inserido nela”, analisa. Por isso, casos de violência, como o estupro coletivo, ocorrido no Rio, redobram a atenção para a misoginia na música e nas outras artes. “A sociedade e sua produção cultural são imbricadas, não se pode falar delas de forma separada. Se a produção cultural é impactada por discursos de ódio e falas hegemônicas, ela também vai impactar (a sociedade). Estão o tempo todo se retroalimentando, não há quebra”, diz Caldeira. Assim, a cultura da violência contra a mulher “vai se cristalizando aos poucos quando não é problematizada”, completa. Num país em que a cultura tantas vezes é relegada politicamente e desprezada por uma parcela da população que não reconhece seu valor, basta lembrar dos números para não ter dúvidas da gravidade da relação entre a violência contra a mulher e sua naturalização na construção cultural. O Brasil está em quinto lugar no ranking mundial de feminicídios segundo o Mapa da Violência de 2015. E mais: aqui, cinco mulheres são espancadas a cada dois minutos. “É preciso pensar nessas mensagens, porque é um problema real do mundo empírico. Mulheres sofrem violência todos os dias”, diz Caldeira. “E isso não (vale) só para as músicas que fazem diretamente apologia à violência, mas também às que tratam a mulher como objeto e a destituem de humanidade. Praticar a violência contra aquela outra que você não vê como semelhante fica mais ‘fácil’ e ‘aceitável’, com todas as aspas possíveis”, analisa. Exemplo disso era “Lôraburra”, quando Gabriel Pensador cantava: “Mas eu só vou te usar, você não é nada pra mim (…) Lôraburra, cê não passa de mulher-objeto”. Para piorar, no clipe, a moça rejeitada após o sexo se matava, e o rapper jogava uma camisinha usada sobre o corpo dela no velório. Outra faceta disso é a romantização das relações abusivas e da submissão da mulher. “Muita gente fala que as músicas do Chico são machistas”, comenta Bia Nogueira, ponderando que “a maioria está no contexto de espetáculos, mas, por que a mulher sempre aparece nesse lugar da que ama apesar de o cara trair? A que é agredida e continua lá, sempre doce esperando seu macho?” Para Nina Caetano, há de se considerar o contexto de produção – o que faz um samba machista dos anos 40, como “Ai que Saudades da Amélia”, de Mario Lago, ser mais compreensível do que um escrito hoje, mas a apologia ao feminicídio é inaceitável em qualquer tempo. O que pesa é se, à época, o artista já era reacionário e preconceituoso, mesmo que houvesse posições mais críticas ao redor. Afeto. Se a misoginia aparece em todas as produções culturais, na música ela adquire atributos singulares. O ritmo e a melodia estabelecem uma relação mais sensorial do que racional. Além disso, “nossa relação com a música é permeada pelo afeto e pela memória, é de socialização de grupos e de comunidades. Então, não é só uma música, é uma forma de nos relacionarmos com o mundo”, diz Caldeira. E quando aquele artista que marcou sua vida lança uma música misógina? “As pessoas, às vezes, preferem ignorar. Por mais que a relação de afeto exista, é preciso escutar. A partir do momento em que as mulheres dizem que é uma violência, elas têm um lugar de fala legitimado pela própria experiência. Seria muito produtivo se os próprios artistas reconhecessem esses discursos de ódio e absorvessem essas reivindicações”, diz a pesquisadora. “O Criolo, quando foi lançar seu disco, falou que refez várias letras porque se tocou que eram misóginas e homofóbicas, isso alguns anos depois de ter escrito. Esse movimento é raro. Os homens fazem menos essa desconstrução porque estão sentados no privilégio”, comenta Nina Caetano. Bárbara Caldeira e Bia Nogueira chamam a atenção para o caso dos Racionais MCs, por músicas como “Mulheres Vulgares”. “É um grupo que faz a reflexão sobre a opressão contra o negro, mas não consegue dar esse passo sobre a opressão das mulheres”, diz a cantora. “Não é porque uma manifestação cultural e musical tem algum aspecto de resistência que não será opressora em outro”, concorda Caldeira. Mulheres se unem para conquistar espaço na música Diante da quantidade de letras que incitam a violência contra a mulher na música brasileira, não é por pouco que um disco como “A Mulher do Fim do Mundo”, de Elza Soares, seja tão celebrado. Sobrevivente, Elza brada: “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, dando o número do disk-denúncia (180). No funk, também ganha espaço o empoderamento feminino, que tem como face mais conhecida Valesca Popozuda. Ainda que reforce a rivalidade feminina, afirma a propriedade do próprio corpo e desejo. “Larguei Meu Marido”, da Gaiola das Popozudas, “A Porra da Buceta É Minha”, de Valesca, e “Piranha É o Caralho, Você Não Sabe o que Eu Sofri em Casa”, da MC Nem, são o trio preferido da DJ feminista Shaitemi Muganga, nome adotado por Nina Caetano. Ela começou a tocar há três anos, chamada pela DJ Black Josie, que queria ampliar o espaço para DJs mulheres na cidade. Depois de um tempo, começou a investigar a discotecagem feminista, que pode ser dançada com frequência em festas na Gruta. Na set list, os hits machistas estão vetados – e ela estranha que outras DJs os toquem. “Mesmo quando não ponho discotecagem feminista, muita coisa não entra por apologia ao estupro, misoginia, violência contra a mulher”, diz. E não falta mulher talentosa para tocar. Recentemente, a DJ se apaixonou pelo som da MC Dandara, da velha guarda do Rio, “da época em que o funk era político”, como diz. Zaika dos Santos, Sarah Guedes, Negra Lud, Tamara Franklin, Negra Black, Pérolas Negras, Luana Hansen, Tati Botelho e Karol Conká estão na sua lista, embora algumas mineiras ainda não tenham gravação com qualidade de estúdio para as festas. “A produção das mulheres daqui é muito boa, forte e combativa”, elogia Nina. Se a cena musical feminista está cada vez mais potente, é consequência da união das próprias mulheres para se fortalecerem. Isso vale para as DJs e para as compositoras. A cantora e compositora Bia Nigueira produz dois desses projetos: o Mulheres Criando, que acontece na Efêmera Casa de Artes, e o Sonora – Ciclo Internacional de Compositoras, que começa no dia 2 de julho, no mesmo local, e vai até 10 de julho. Serão 50% de cantoras negras e 50% brancas, com uma noite reservada ao rap. Titane vai interpretar músicas de outras autoras, e Marina Machado, Trio Amaranto, Ana Cristina e Déa Trancoso também participam. “É um lugar de fomento, porque a gente não tem espaço. Os festivais de composição são muito masculinos. Os editais que têm como foco a composição privilegiam homens. Isso é esmagador. Programas maravilhosos, como o Cantautores, o Salve o Compositor – que tem o cuidado de colocar mais mulheres, mas ainda é pouco –, e o Savassi Jazz Festival têm muito pouco espaço para compositoras e para pessoas negras. Como vamos reverter isso? Se a gente não se unir nessas alteridades, fica muito difícil seguir em frente”, diz Bia. Como ela diz, é preciso que aqueles que já têm espaço cedam para que caibam os outros também. (LR) Luciana Romagnolli |
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Fonte: O TEMPO
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